Alberto não gostava de
motoqueiros. Nunca gostou. Também, era motorista de ônibus já há quarenta anos.
Via as motos desfilarem trapaceiras no meio do corredor de carros e faltava se
esganar. O sinal abria e elas disparavam. Um borrão de luz vermelha se
distanciando. Esnobe. Sim, Alberto acreditava ter razão, os motoqueiros
abusavam, com suas máquinas, do tênue fio da vida.
Faltava pouco para se aposentar. Logo Isaura teria que aturá-lo o dia inteiro
intrometendo-se nos afazeres da casa. Criticando o feijão, que gostava com o
caldo bem grosso. Gritava: "Isaura, cê colocou água neste feijão!"
Odiava quando a mulher colocava água no feijão. Para ele, somente deveria usar
a água em que o mesmo foi cozinhado. Depois de comer bem, deitava-se no sofá e
ligava o televisor. Assim passaria a tarde toda. Preso aos programas mais
banais que o sistema de televisão podia veicular.
Era realmente um homem comum. Sempre de casa para o trabalho. Tinha como
diversão as molecagens com as moças que entravam no ônibus. Elas ficavam
sentadas na parte da frente, antes de passar a roleta. Na verdade o suportavam
para não pagar a passagem. Mas isso lhe fazia muito bem.
Era baixinho, de ombros largos e doloridos. Atrás do volante, entretanto, era
gigante e assustador. Os outros carros afastavam-se quando passava com sua
zoada avassaladora. Assim, seu ronco era grande quando via as magras motos
passarem tranquilas por meio dos carros e deixá-lo para trás. Arremessava
agressivo no meio do trânsito, com o corpo imenso.
Naquele dia estava com o coração cheio. Distribuindo "bom dia" para
todos que entravam. Mas não esperava novidade, sabia o quanto seria chato
perseguir motocicletas no asfalto quente. Todavia, a realidade tem suas
surpresas e desta vez veio cantarolando. Parou gentilmente para que os outros
passageiros entrassem e ainda olhou para os lados, como se devesse algo para os
passantes. Era uma mulher. Não qualquer delas. Aquela ali fazia o vento
assobiar. E ele assobiava naquele dia. Usava um vestido vermelho. Rodado.
Quando subiu, junto com seu sorriso, Alberto não conteve o enorme prazer que
sentiu. Estendeu o braço e tentou ajudar a beldade a subir o degrau.
- Nossa! - falou sem perceber.
Ela se limitou a um sorriso lindo, perfumado como seu decote, que avançou
primeiro. Não era brasileira, certamente. Guardava traços com o povo argentino.
Balbuciou um castelhano doce, mas enlouquecedor como o tango. O ônibus roncando
impaciente e o homenzinho de boca aberta, sem saber o que fazer. Os olhos
pedindo. Não, implorando para que sentasse ali, perto dele, nas cadeiras
reservadas aos idosos e deficientes. Ela juntou os joelhos e assim o fez.
Sentou bem próximo. Ele fechou os olhos e respirou o perfume agradecido. Pensou
saborear os pensamentos dela, tão doces como ameixas maduras.
Reduziu a velocidade para demorar o máximo aquela viagem. Motos e passageiros
não o incomodavam. Não naquele dia. Um azul profundo apoderou-se do céu. As
ruas ficaram coloridas de um verde pastoso, como numa tela de Vincent Van Gogh,
apenas para dizer o quanto tudo estava perfeito. E o carro deslizava barulhento
enquanto os dois comungavam do silêncio maravilhados. A moça de vermelho
olhando pela janela enquanto Alberto dirigia absorto em seu paraíso.
Um carro passou com um punhado de crianças e uma estridente música infantil. Balão Mágico, uma lembrança da
infância pobre, mas alegre, nos campos cobertos de tocos de quase todas as
satélites do Distrito Federal. Como moravam de aluguel, mudavam-se muito,
sempre para um lugar mais inóspito.
Ela desceu próximo do Hospital de Base. No ônibus, ficou o perfume doce e um
olhar no fundo da alma daquele motorista. Assim, sem perceber, ele ia saudando
com a mão os motoqueiros que pediam passagem. Um sorriso bobo na face, como um
garoto que esperasse o Papai Noel numa casa com várias chaminés. O dia,
portanto, transcorreu mágico, escutando as ladainhas do cobrador sobre suas
próprias fanfarrices. Passou a sentir-se especial, já que o outro dizia do
seu charme quase que irresistível para cativar a loira de vermelho.
Em casa, Alberto não pode dormir. A respiração da mulher do seu lado o
incomodava. Fez um apanhado de todo o tempo que estivera casado. Abismado,
descobriu que não era feliz. Começou, então, a matraquear um plano para
deixá-la. Desapareceria sem explicação. Nesses dias, pessoas saem para
trabalhar e não voltam. Pensariam que foi sequestrado, morto, ou até que
encontrou outra. E na verdade, tinha esse direito, depois de quarenta e cinco
anos de casamento enfadonho e sem graça.
A mulher entrou no quarto e ele estava cantarolando enquanto se vestia. Em
seguida banhava-se de perfume. Ela parou na porta e ficou a observar. Pasma, já
que aquele homem não costumava passar nem água nas axilas. Todavia, não achou
ruim. Sempre quis que o marido tivesse um pouco de vaidade. Naquela idade,
certamente não estaria atrás de um rabo de saia. Então, o que poderia concluir
é que sua insistência finalmente deu resultado. Correu nas pontas dos pés e
abraçou o marido por trás. Suspirou.
- O que é isso, mulher? - disse ele.
- Ora, nada, só quis abraçá-lo.
- Mas que coisa! Espera, vou trabalhar...
- Podia não ir hoje, certamente o sr. Alvarenga iria entender.
- É verdade, ele está muito feliz comigo depois que atropelei aquele motoqueiro
perto do viaduto novo.
- Ora, aquilo foi um acidente, ele sabe disso.
- Quando se trata de mim e de motoqueiro não existe acidente, todo mundo sabe.
A mulher ficou sentada na cama sentindo o perfume no quarto. Pensou...
"Meu Deus, que cheiro! Deve estar até vencido este perfume. Tanto tempo
que não usa." Abraçou a camisa suja em cima da cama e respirou fundo. O
cheiro forte de suor não a trouxe à realidade. Conheceram-se bem jovens. Não
era possível esquecer. Alberto era lanterninha no cinema da cidade e Isaura
sempre ia lá com um grupo de amigas. As amigas assistiam ao filme, mas ela só
tinha olhos para o lanterna baixinho e gentil.
Depois que se conheceram não foi imediato o romance. Ele não parecia
interessado nela. As amigas criticavam, apesar de nenhuma delas
pagar entrada do cinema. Um dia, sem mais nem menos, ele fez uma proposta.
Pediu que ficasse para a última sessão. Assim, poderiam assistir juntos um
filme que era bem picante. Isaura não se conteve: correu e contou às amigas.
Assim, mesmo depois daquela demora toda, naquele dia fizeram tudo. Correu na
cidade que a moça havia engravidado. Casaram-se nestes termos, esperando o bebê
chegar, todavia este nunca veio. Mas isso não foi o fim daquele relacionamento.
Aparentemente, o casal viveu feliz todos aqueles anos.
Quando Alberto saiu de casa, não deu conta do carro preto que o seguiu.
Deixaram que caminhasse até a parada e estacionaram ao longe. Pelos vidros
fumês não dava para saber quantas pessoas estavam de campana. O motorista pegou
o ônibus de rotina. Saudou os amigos e sentou-se na parte da frente para
conversar. Vagarosamente aquele carro seguia o ônibus. Até o terminal onde
Alberto começaria seu itinerário.
O cobrador estava efusivo, contando ter visto a tal loira de vermelho perto do
terminal. Os dois ficaram confabulando a possibilidade de ela morar por ali. E
era estranho, porque encontraram a mulher diversas vezes depois daquele dia.
Cada vez mais bonita e sempre muito receptiva e gentil. Entretanto, estava
sempre subindo ao ônibus em uma parada diferente. Chegaram à conclusão de que
era puta.
Alberto estava arrasado. Entrava em casa triste, sem conseguir esconder o
desalento. Aquela mulher maravilhosa não queria seduzi-lo. Não o desejava. A
maldita verdade assinava que ela queria apenas andar de graça no ônibus ou que
estava querendo ganhar uma parte do seu ordenado. Foi quando jogou tudo para o
alto e pensou: "Que se dane!" Ficaria com aquela mulher de qualquer
jeito. Custasse o preço que custasse. Criou coragem e aguardou. Sabia que em
uma parada qualquer ela iria subir.
Na oportunidade ela já não estava tão bonita, como nos outros dias. Alberto
também não parecia tão educado. Saía xingando os motoqueiros pelo caminho,
amontoando marchas, como se carregasse gado para o abatedouro. Ali do lado,
majestosa, a loira sorria. Parecia gostar mais ainda dele assim. Mas Alberto
sabia do embuste. Sabia o que ela queria e iria dar para ela. Deixou o carro
descer uma ladeira em alta velocidade e virou para a madame:
- Como vai ser? Acho que já perdemos muito tempo. Talvez você tenha um lugar
legal para irmos depois que eu deixar o ônibus.
- Nossa, como você mudou! Disse, com sotaque carregado de quem não aprendeu
direito o idioma português.
- Você não percebeu nada!
Ela riu, finalmente aquele ônibus estava desgovernado e se dirigiria para o
local que ela esperava. Um vórtice no céu engolia as nuvens e a paisagem verde
do plano piloto desmanchou-se num amarelo cru. A moça tentou descer em frente
ao Hospital de Base, mas Alberto não deixou. Manteve a porta fechada e disse
que naquele dia não deixaria passar. Os passageiros ficaram confusos com aquele
impasse. E aos poucos o ônibus foi ficando vazio. Num dado momento o cobrador
disse que ficaria perto de um terminal de metrô e assim fez. Agora eram somente
os dois naquela balsa triste, onde um homem baixo e comum olhava sério para
mulher doce e meiga.
Devolveu o ônibus e pegou emprestado o carro de um amigo. Ela o esperava duas
ou três paradas do terminal. Foram para um apartamento em Taguatinga, mobiliado
com bastante bom gosto. Ela colocou uma música e trouxe cerveja, que ele bebeu
sedento. Soltaram gargalhadas e o homem abraçou a mulher como se ela fosse
dele. Desta forma, bruto, quis possuí-la, mas foi só isso. Não chegou a provar
do mel que brotava de entre aquelas pernas.
Jogado no chão, ainda acordado, pode ver os três homens entrarem com seus
jalecos brancos. Tentou se mexer, mas os membros não respondiam. Dos seus olhos
brotou uma lágrima. A mulher maravilhosa estava trocando de roupa. Tirou o
vestido vermelho, com o qual tanto sonhou, e pôs um jaleco branco de
enfermeira. Neste momento ficou nua na sua frente. Assim, Alberto pode
constatar o quanto, de fato, a danada era bonita. O sangue jorrou do corte
próximo do seu rim e na memória o batom muito vermelho da loira ainda retratava
o êxtase por está ali.
Na rua, escutou o som mórbido de uma moto. Lembrou dos riscos grosseiros que
fazia na pista. Foi somente depois de dez dias que Isaura encontrou os restos
do marido totalmente carbonizados dentro do carro que emprestara do amigo. Na
empresa de ônibus ainda falam da loira. Ela nunca foi ligada aos fatos, mas
para alguns, aquele corpo não era dele. Entre um petisco e outro, o que se
dizia era que um amigo vivia feliz na Argentina.